segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Superman, Jordan e meu pai



Uma cena molhou meus olhos no filme que traz de volta o Superman. É uma que ele contempla, filosoficamente, seu filho adormecido. É uma despedida. Ele diz que verá o mundo pelos olhos do filho. E voa rumo à escuridão. Sei lá. Imagino que o autor dessa cena tenha se inspirado no Hemingway de Por quem os Sinos Dobram. O romance se passa na Espanha tomada por uma guerra interna, nos anos 30. Robert Jordan, um americano, combate pelo lado que ele julga bom. Na luta ele conhece Maria, uma jovem espanhola pura, linda, ignorante. Apaixonam-se. As coisas vão mal para o lado defendido por Jordan, e na fuga ele é ferido e não pode acompanhar o ritmo dos demais. Os inimigos vão alcançá-lo. Ele diz ao grupo para que o deixe. Maria não quer. Ele como que a obriga partir. E diz mais ou menos o que o Superman disse ao filhinho: “Viverei em você”. É um dos finais mais lindos da literatura moderna.

Quando penso em meu pai morto sempre me ocorrem as palavras de Robert Jordan, repetidas agora pelo Superman. Meu pai vive em meus irmãos e em mim. Meu pai vê, por nós, as coisas que tanto amava. O mar, o centro da cidade, o time de futebol, os filhos para quem ele era, como no poema, o norte, o sul, o leste e o oeste. E até os netos, que ele não conheceu.

A vida é instável, fugaz, precária. Os budistas dão a isso o nome de impermanência. Os filósofos gregos trataram dessa precariedade com outras palavras: “Tudo flui”, escreveu Heráclito. Tudo está em constante mudança. O rio em que você põe os pés, hoje não será o mesmo rio amanhã, uma vez que as águas estão em perpétuo movimento. Pensar em meu pai morto está em meus irmãos e em mim é como que um desafio à impermanência. Tudo bem. É um desafio ingênuo, romântico, mas as coisas ingênuas e românticas são muitas vezes o que de melhor e mais autêntico o ser humano consegue produzir. Me contenho neste exato momento para não gritar que detesto a impermanência. Ainda que a compreenda.

Montaigne, o grande filósofo que aquece minhas jornadas frias, escreveu que, para ele, o que define o tamanho de alguém é sua atitude perante a morte. Sócrates tomou bravamente a cicuta que o mataria, e antes de morrer consolou os discípulos consternados. O maior desses discípulos, Platão, imortalizaria Sócrates em sua obra. Sócrates viveu em Platão. Sêneca, o estóico que Montaigne tanto admirou, também consolou seus discípulos quando cumpriu a sentença de cortar os pulsos ordenados por Nero. Numa carta ao amigo Lucílio, Sêneca escreveu uma frase que a posteridade guardou como que a uma relíquia: “E por mais que você se espante, Lucílio, aprender a viver não é mais que aprender a morrer”. Quem sabe morrer sabe viver. Não passa os dias atormentado pela idéia da morte. Vive uma vida plena, não importa a quantidade de anos.

Meu pai morreu como um bravo. Não se queixou. Enfrentou com coragem inexpugnável a doença que o consumiu e matou em tão pouco tempo. Confortou, com sua força moral invencível, a todos nós que o amávamos tanto. Penso que Montaigne conferiria nota máxima a meu pai. Ele não os legou palavras, mas um exemplo sobre o qual o tempo não terá efeito. Como disseram o Jordan de Hemingway e o Superman, meu pai vive em nós.



Palavra de fé: “Meu filho, ajuda a velhice de teu pai, não o desgastes durante a sua vida”. (Eclesiástico 3,14)

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