terça-feira, 13 de julho de 2010

Um filho e seus presentes

Eu queria que meu corpo fosse como um ninho para o meu filho. Acolhida assim, a criança aprende que o Universo a protege e experimenta a bondade. Aí, sim, os filhotes podem voar seguros, com um futuro à sua frente.

Ter um filho é algo que muda a nossa vida de forma inexorável. Dali para a frente o coração caminhará por caminhos fora do seu corpo.

Lembrei-me dos meus sentimentos antigos de pai diante dos meus filhos adormecidos. Veio-me à mente a imagem de um ninho. Bachelard, o pensador mais sensível que conheço, escreveu sobre os ninhos. Imaginou que para o pássaro o ninho é uma cálida e doce morada, uma penugem externa antes que a pele nua encontre sua penugem corporal.

Era isso que eu queria ser. Eu queria que o meu corpo fosse um ninho-penugem que protegesse meus filhos.

Que felicidade enche o coração de um pai quando o filho que ele tem no colo se abandona e adormece! Deitada adormecida nos braços-ninho do seu pai a criança aprende que o Universo é um ninho! Não importa que não seja! Não importa que os ninhos estejam todos ao abandono! O ninho é uma fantasia eterna. “O ninho leva-nos de volta à infância, a uma infância!” (Bachelard).

É impossível calcular a importância desses momentos efêmeros na vida de uma criança. É impossível calcular a importância desses momentos efêmeros na vida de um pai. O pai que tem o seu filho adormecido nos seus braços é um poeta! Um homem que guarda memórias de um ninho na sua alma tem de ser um homem bom. Uma criança que guarda memórias de um ninho em sua alma tem de ser uma criança calma.

Mas logo o pequeno pássaro começará a ensaiar seus vôos incertos. Agora não serão mais os braços do pai, arredondados num abraço, que irão definir o espaço do ninho. Os braços do pai terão de se abrir para que o ninho fique maior. E serão os olhos do pai no espaço que irão marcar os limites do ninho. A criança se sente segura se, de longe, ela vê que os olhos do seu pai a protegem. Olhos também podem ser ninhos.

O que a criança deseja não é liberdade. O que ela deseja é excursionar, explorar o espaço desconhecido desde que seja fácil voltar. Tela de Van Gogh: é um jardim. Ao lado direito do jardim, mãe e criança que acabam de chegar. Ao lado esquerdo, o pai, jardineiro, agachado com os braços estendidos na direção do filho pequeno. É preciso que o pai esconda o seu tamanho, que ele esteja agachado para que seus olhos e os olhos do seu filho se contemplem no mesmo nível. A cena é como um acorde suspenso, que pede uma resolução. É certo que o filho largará a mãe da mãe e virá correndo para o pai... E a fantasia pinta a cena final de felicidade que o pintor não pode pintar: o pai pegando o filho no colo, os dois rindo de felicidade...

O tempo passa. Os pássaros tímidos aprendem a voar sem medo. É a adolescência. Pobre pai que continua a estender os braços para o filho adolescente. Adolescente não quer ninho. Adolescente quer asas. Voar, voar... A volta ao ninho é o momento que não se deseja. Porque a vida não está no ninho, está no vôo. Se eles procuram os olhos dos pais, não é para se certificarem de que não estão sendo vistos! Aos pais só resta contemplar, impotentes, o vôo dos filhos para onde eles mesmos não podem ir. E o pai se tranqüiliza e pode finalmente dormir ao ouvir, de madrugada, o barulho da chave na porta: “Ele voltou...”.

Mas chega o momento quando os filhos partem para não mais voltar. Através da minha janela vejo um ninho que rolinhas construíram nas folhas de uma palmeira. A pombinha está chocando seus ovos. Vejo sua cabecinha aparecendo fora do ninho. Mas numa outra folha da mesma palmeira há um outro ninho, abandonado. Esse é o destino dos ninhos, de todos os ninhos: o abandono.

Gibran Kahlil Gibran escreveu, no seu livro O Profeta, um texto dedicado aos filhos. Não sei de cor suas precisas palavras. Mas vou tentar reconstruí-las. É aos pais que ele se dirige.

“Vossos filhos não são vossos filhos. Vossos filhos são flechas. Vós sois o arco que dispara a flecha. Disparadas as flechas, elas voam para longe e o arco fica só”.

Este é o destino dos pais: a solidão. Os filhos partem para construir seus próprios ninhos e é a esses ninhos que eles deverão retornar.

Assim é com os bichos. Deveria ser conosco também. Mas não é. Quem é pai tem o coração fora de lugar, coração que caminha, para sempre, por caminhos fora do seu próprio corpo. Dito pela Adélia: “Pior inferno é ver um filho sofrer sem poder ficar no lugar dele”. Dito pelo Vinícius, escrevendo ao filho: “Eu, muita noites, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua”.

Sei que é inevitável e bom que os filhos deixem de ser crianças e abandonem a proteção do ninho. Eu mesmo sempre os empurrei para fora.

Sei que é inevitável que eles voem em todas as direções como andorinhas adoidadas.

Sei que é inevitável que eles construam seus próprios ninhos e eu fique como o ninho abandonado no alto da palmeira...

Mas o que eu queria, mesmo, era poder fazê-los de novo dormir no meu colo...

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