quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Conversa com o sábio: O que eu tenho para dar...

Nossos sonhos, mesmo aqueles inatingíveis, merecem ser cultivados e também divididos. Assim, quem sabe, eles se tornem possíveis.

Ler Mario Quintana é uma das alegrias da minha vida. Ele escreve com a leveza de um pássaro. Ele mesmo confessou sua condição alada ao escrever: “Todos esses aí estão atravancando o meu caminho, eles passarão, eu passarinho...”. Mario Quintana escreve de forma que até uma criança entende ao lê-lo. As coisas complicadas, eles as despe até que apareçam na simplicidade da sua nudez.

Veja, por exemplo, esta quadra, que recebeu o nome de “Das Utopias”: “Se as coisas são inatingíveis...ora! Não é motivo para não quere-las.../ Que tristes os caminhos, se não fora/ A mágica presença das estrelas”.

É noite. Tudo está escuro ao nosso redor. Nem mesmo se vê o caminho que nossos pés pisam ao olhar para o chão. Mas olhando para o alto, para o céu escuro, vemos a estrela inatingível. Pode muito bem ser que, dependendo dos anos-luz que a separam da nossa Terra, ela já tenha deixado de existir por milhares de anos. Permanece apenas a sua luz. Assim fizeram os Magos, que seguiam a direção da estrela nos céus para encontrar o Deus-criança na terra. E era assim que faziam os navegadores, no mar escuro.

É o sonho inatingível que nos faz andar. Os caminhantes ganham força comendo o que não existe. O que não existe tem poder. Valéry entendeu: “Que seria de nós sem o socorro do que não existe?”.

Fernando Pessoa disse que é assim que acontece: “Deus quer. O homem sonha. A obra nasce”.

Mas eu sou velho. Velhice é o tempo em que já não se cobram obras dos velhos. Porque a obra leva tempo e aos velhos o tempo falta. Falta-me tempo. Sobram-me, entretanto, os sonhos. Minha missão de educador é repartir com meus discípulos os meus sonhos. Quero apontar-lhes a estrela. Uma estrela apenas. As muitas estrelas confundem os caminhantes. E o meu sonho – sonho que me dá alegria ao pensar na possibilidade da sua realização – é muito simples. Sonho com um jardim.

Os poemas sagrados dizem que foi um sonho que fez com que o Criador criasse um jardim. Se ele sonhou com um jardim é porque jardins não havia. E Deus se sentiu infeliz. Da sua infelicidade surgiu o sonho. E do sonho, a obra. Criou o Universo imenso, bilhões de astros girando num tempo infinito. Mas essa imensidão esmagadora não era bela nem manda. Assim, o Criador foi afunilando a sua obra até chegar a um pequeno espaço, a nossa Terra, onde plantou um jardim. Plantado o jardim, dizem os textos sagrados, Deus viu, sorriu e disse: “É muito bom”. E foi nesse Paraíso que ele colocou duas crianças, um homem e uma mulher, para gozar as delícias do jardim. Quem caminha por um jardim sabe que o nosso destino é a felicidade. No jardim, o nosso corpo faz amor com a natureza.

E para que o nosso prazer com a natureza fosse múltiplo o Criador colocou em nossos corpos esses órgãos eróticos a que damos o nome de sentidos. Os olhos, para fazer amor com as cores, com as formas. Os ouvidos, para os prazeres das canções e do barulho dos riachos. Através do nariz somos penetrados pelos perfumes. A boca se deleita com o mel e com o beijo. E a água do mar agrada a nossa pele... O jardim nos diz que estamos destinados ao prazer.



E o Criador nos deu a vocação suprema: vivemos para ser jardineiros. Existimos para acariciar a terra, para amansá-la, para fertilizá-la, para engravidá-la, para torná-la bela. O Milton Nascimento estava certo. Também a Terra tem cio! Ela nos deseja.

A natureza em si mesma é cruel, bruta e insensível. Ela mata sem dó os distraídos. Mas o jardim é o lugar onde o homem e a natureza se tornam amantes.

Todas as outras vocações estão a serviço desta vocação suprema: plantar e cuidar do jardim, lugar onde os homens, as mulheres e as crianças fazem amor com a natureza.

Mas que coisas horríveis fizemos com a nossa amante! Os homens se esqueceram dela, da Terra, e a trocaram por prostitutas. E até já se anuncia o momento próximo em que sua beleza e sua fertilidade se extinguirão, como resultado daquilo que os homens estão a lhe fazer.

Sonho – não me importa que seja um sonho intangível – com o renascimento do amor antigo, quando os homens olharão para a natureza com os olhos encantados e sofrerão ao vê-la violentada pelos vândalos que a estupram em nome do crescimento econômico.

Sonho com o dia em que as escolas, deixando de lado tudo o que a tradição escolar acumulou e endureceu, se transformarão em “escolas de jardinagem”, em que as crianças, desde pequenas, serão ensinadas a amar e a cuidar da nossa Terra. Por que se a Terra não for cuidada, se a Terra, nossa mãe, morrer, de que servirão todos os outros saberes acumulados? Por acaso saberemos viver em desertos? Esse será o dia em que desejaremos morrer.

Sonho com o dia em que as religiões abandonarão os seus templos e não mais pedirão favores aos deuses. Nesse dia elas compreenderão que no Paraíso, o jardim divino, não havia templos porque Deus andava pelo meio das árvores e se deleitava no prazer do vento fresco da tarde.

Sonho com o dia em que não mais diremos “bom dia” ao nos encontrar e diremos antes “como a nossa Terra é bela!”.

Velho, minhas mãos estão vazias de obras... Mas meu coração está cheio de sonhos. É o que tenho para dar.




Palavra de fé: “Presta atenção às minhas palavras, aplica teu coração à minha doutrina, porque é agradável que as guardes dentro do teu coração e que elas permaneçam, todas presentes em teu lábios”. (Provérbios 22, 17-18)

Nenhum comentário:

Postar um comentário